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“Bandidolatria e democídio”: a questão mais importante de todas
Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Antes de travar contato com Bandidolatria e democídio: ensaios sobre garantismo penal e a criminalidade no Brasil, obra de autoria dos prezados promotores de Justiça gaúchos Diego Pessi e Leonardo Giardin de Souza, em terceira edição ampliada pela SV Editora, é possível imaginar preconceituosamente que o livro seja um “desfile de juridiquês”. A especulação, folgo em dizer, não poderia estar mais equivocada.
Em texto que exibe desenvoltura filosófica e profundidade teórica, os autores não recorrem apenas, sequer majoritariamente, a doutrinadores do Direito ou a artigos jurídicos para atacar os problemas sobre que se debruçam. Ao contrário: as duas referências mais recorrentes na obra vêm da filosofia: ninguém menos que Olavo de Carvalho e o cientista político Eric Voegelin. O livro ainda reúne contribuições de autores como Theodore Darlymple e Mário Ferreira dos Santos, todos nomes facilmente reconhecíveis pelo público liberal e conservador.
A escolha permite que a abordagem, conquanto algumas vezes inevitavelmente e oportunamente densa, traga ao alcance de um público menos restrito à área de formação e atuação de Diego e Leonardo uma temática que não poderia ser de maior interesse para qualquer brasileiro. Afinal, trata-se, sem exageros, da questão mais importante de todas para o país, porque é a mais urgente: como, quando e por que “naturalizamos” uma realidade dramática em que sessenta mil compatriotas perecem violentamente todos os anos? Tudo o mais, por importante que seja, está alguns degraus abaixo em relevância; não há como tratar de todos os outros problemas sem se preocupar primeiro com o fato de que você tem cada vez menos convicção de que voltará ileso para casa.
O caráter crucial da questão é inegável, mas os autores não se limitaram a diagnosticá-la superficialmente, apenas isolando-a de outros fatores que a estimulam. Em uma estrutura dividida em duas partes, cada uma redigida por um dos procuradores, o livro apura as causas subterrâneas e profundas desse quadro de coisas, encontrando-as na adoção de uma ideologia abstrata, desconectada da realidade, por parte da intelectualidade e da burocracia técnica – o mesmo “estamento burocrático” de que falava Raymundo Faoro -, aí incluídos os juristas e funcionários públicos do Judiciário, que aposta na proteção a “direitos humanos” como slogan para privilegiar os criminosos e sustentar o morticínio. Isso torna o significado do título bastante claro; os autores enxergam no Brasil um culto (“latria”) aos bandidos como vítimas sacrossantas de um “sistema injusto”, e a consequência disso é a alimentação viciosa do “democídio” – expressão criada pelo professor norte-americano R. J. Rhummel para significar “o assassinato de qualquer povo ou indivíduo por seu governo”.
Diego Pessi: o gramscismo e a mentira rousseauniana
No caso brasileiro, pelo governo e as esferas de poder em geral, contaminadas pela hegemonia esquerdista perseguida com base nas teorias de dominação cultural expostas principalmente pelo filósofo marxista Antônio Gramsci, conforme brilhantemente exposto por outra referência de Diego e Leonardo, o antropólogo Flávio Gordon, em seu A Corrupção da Inteligência – livro que, aliás, tem em Bandidolatria uma interessante complementação. De Gramsci e do substrato marxista viria a intuição falsa de que os criminosos ocupariam um lugar inevitável na “luta de classes” contra o “direito burguês”, o que nada mais é que uma adaptação mal disfarçada do relativismo moral da “moral revolucionária” de que, por exemplo, já falava Trotsky: bem e mal não existem, existe a necessidade de derrubar o sistema social inteiramente para implantar uma utopia assassina.
Em sua metade do livro, Diego Pessi se esforça por desnudar, recorrendo com riqueza a pesquisadores, notícias e dados estatísticos, o engodo do criminoso como um produto mais ou menos inocente das circunstâncias sociais, no pior estilo da máxima rousseauniana “o homem é bom, mas a sociedade o corrompe”, que está por trás das ideologias criticadas no livro. Ele sustenta que prevalecem imensamente a subjetividade e a prerrogativa decisória do indivíduo na hora de cometer um crime, muito mais que as injunções do meio ou as condições socioeconômicas.
Pessi igualmente revisita uma série de lugares-comuns do politicamente correto, como a suposta eficácia da política de desarmamento e a ideia de que a polícia “mata demais” e “prende demais” – revelando ser o “encarceramento em massa” uma ilusão em um país em que as prisões são sistematicamente sabotadas e mal tratadas para fortalecer o discurso da ineficiência de medidas duras e justas contra a barbárie reinante, ao passo que o ordenamento jurídico consagra um sem-número de dispositivos de relaxamento e “progressão” de penas.
Uma posição polêmica para liberais mais radicais e para libertários, defendida pelos dois autores com riqueza de argumentos e dados, é a oposição à legalização ou descriminalização das drogas, tais como a maconha e o crack. As drogas são apontadas, com base em textos originais que atestam a intenção de líderes socialistas de distintas origens nesse sentido, como instrumentos de desestabilização das sociedades ocidentais, bem como são mostradas declarações de poderosos traficantes favoráveis à legalização.
Os autores consideram uma irracionalidade a ideia de que a descriminalização inibiria a violência, dado que os narcotraficantes “equipados com armas de guerra, que costumam executar policiais e membros de facções rivais com requintes de crueldade”, não “irão simplesmente depor seu arsenal e cessar suas atividades, ou, ainda, se submeter à fiscalização do Estado e à concorrência do livre mercado”. A seu ver, o mercado lícito potencializaria o ilícito, “aumentando o número de consumidores e fomentando ainda mais a criminalidade”. A ideia de combater o poderoso tráfico com o livre mercado “não leva em conta um dado básico da realidade: a liberdade só pode subsistir quando ancorada num princípio de ordem que a restringe e disciplina” e o tráfico de drogas não é uma força criadora da sociedade, mas sim destrutiva, estruturada no extermínio “de qualquer concorrente ou obstáculo à expansão do cartel”.
Giardin e a história do garantismo penal
Concorde-se ou não com os argumentos, em sua parte, Giardin reconstrói didaticamente o histórico de emergência do moderno tráfico militarizado no Brasil, que comanda o crime de dentro da cadeia, partindo das relações do crime comum com o terrorismo de esquerda dos anos 70, na gênese do Comando Vermelho, e dissecando minuciosamente o modo por que as forças socialistas, do Foro de São Paulo e do megainvestidor esquerdista George Soros, se aproveitam da estrutura do narcotráfico e têm interesses na desestabilização social daí decorrente.
A maior parte do texto de Giardin, contudo, é uma análise minuciosa da ideologia do “garantismo penal” – análise que começa, aliás, com uma das exposições mais objetivas e didáticas que já vi do conceito de “ideologia” na acepção negativa e original da palavra, que surge na França, com o deboche de Napoleão aos teóricos políticos de sua época, associando o termo à devoção abstrata a uma ideia que se deveria impor ao mundo concreto.
Com riqueza de detalhes, ele mostra como essa ideologia nasceu a partir de um movimento de juristas politizados à esquerda na Itália conturbada dos anos 70, a Magistratura Democrática Italiana, em especial com base nas ideias do jurista Luigi Ferrajoli. O apelo oportunista ao positivismo jurídico disfarçou, na obra de Ferrajoli, as intenções políticas de seu apelo às “garantias dos direitos” do criminoso como preocupação máxima do julgador, a ponto de precisar ter sempre por disposição aplicar a pena mais leve. Essa corrente politizada procura se travestir de neutra para “adocicar” o caminho dos meliantes, ocultando uma sub-reptícia desconfiança da aplicação contundente da justiça e do “direito burguês”. Ferrajoli chegou a dizer às claras que “o socialismo é o projeto de uma sociedade para a qual a destruição dos lugares antissociais do nascimento dos delitos – sobretudo a instituição carcerária – é um efeito de sua própria estrutura”, devendo-se buscar a superação da “ética cristã-burguesa”. Comparando-se esse discurso com muito do que se vê por aqui, deve-se no mínimo levar a sério a denúncia de Giardin quanto à hegemonia dessa corrente no Brasil, algo que tem marco histórico com uma reunião de magistrados no Sul em 1986, idealizando “a resistência política revolucionária em que a Justiça fosse uma força ativa na luta de classes, através de uma hermenêutica constitucional visando ao que alardeavam ser ‘um direito melhor e mais justo’”.
As consequências ficam mais evidentes através de exemplos nas últimas páginas, um deles o caso de um projeto de lei influenciado por essa ideologia que propunha extinguir sem julgamento qualquer processo com mais de um ano de duração – modelo explícito de desconexão da realidade, já que isso somente preservaria os casos com réus e investigados menos abastados, incapazes de financiar recursos e mais recursos antes da condenação.
A quantidade de conceitos e informações abordados no livro é muito vasta e este texto já se alonga demais; concluo com uma citação de Giardin, no interesse de estimular o leitor a percorrer as páginas do trabalho importante dos autores: “libertar o pensamento jurídico brasileiro dos grilhões da cultura ideológica do garantismo penal talvez não seja uma solução definitiva para o problema da criminalidade em nosso país, mas, com toda a evidência, é o primeiro e indispensável passo para a restauração da sanidade do nosso sistema de repressão penal e das mentes mesmas de seus operadores”.